Resenha de álbum
Título: Urucungo
Artista: Fabiana Cozza
Edição: Biscoito Fino
Cotação: ★ ★ ★ ★ ★
♪ Seria cômodo para Fabiana Cozza gravar songbook com as músicas mais conhecidas do cancioneiro de Nei Lopes, bamba octogenário do samba carioca que amealhou sucessos nas vozes emblemáticas de cantoras como Alcione, Beth Carvalho (1946 – 2019) e Clara Nunes (1942 – 1983).
Ela própria uma voz já referencial no samba feito no Brasil a partir dos anos 1990, a paulistana Fabiana Cozza segue caminho mais difícil e louvável em Urucungo, álbum que chega ao mundo na próxima sexta-feira, 10 de novembro, em edição da gravadora Biscoito Fino.
Cantora vocacionada para evidenciar o alto quilate da arte negra de Nei Lopes, Cozza apresenta 12 músicas inéditas do compositor carioca com diversos parceiros. Para eleger as 12 que compõem o repertório de Urucungo, a cantora ouviu mais de 30 composições apresentadas por Marcus Fernando, produtor de Nei.
Da seleção de Cozza, florescem obras-primas como Pólen, refinado samba-canção de Fátima Guedes letrado por Nei com versos metalinguísticos tecidos com alto teor poético sobre o ofício do compositor, dono de coração ávido por fecundar canções e amores. A gravação tem o toque do violão de João Camarero, autor do (primoroso) arranjo da faixa.
Sob direção musical de Henrique Araújo, bandolinista e cavaquinhista que assina a produção musical do álbum Urucungo com o percussionista Douglas Alonso, Fabiana Cozza expõe a beleza e a força da obra de Nei Lopes, pensador e ativista da cultura afro-brasileira.
Essa força soa política quando Nei exalta o povo negro enquanto propõe a quebra de “velhas correntes” no majestoso samba Dia de glória, gravado por Fabiana Cozza com a militante Leci Brandão. Dia de glória integra o lote de músicas inéditas da parceria de Nei com Wilson Moreira (1936 – 2018) apresentadas no álbum Urucungo.
As outras três são Ré, sol, si, ré (samba que perfila o cavaquinho como instrumento aliado na conquista da mulher amada), Senhora do mundo (samba que mergulha no mar para pedir a Yemanjá o resgate do amante-náufrago) e Quesitos (valente samba-enredo que fecha o álbum com consciência social e com a adesão da voz do próprio Nei Lopes).
Promovida há 41 anos por Beth Carvalho no álbum Traço de união (1982), a parceria de Nei com Ivan Lins e Vitor Martins é retomada em Urucungo com Já não manda em mim, altivo samba estruturado em duas partes em conformidade com a tradição do gênero.
Com o habitual rigor estilístico, Fabiana Cozza também dá voz ao primeiro samba de Francis Hime com Nei, Ofertório, título que tangencia a pujança do cancioneiro de Hime, cujo piano adorna a faixa arranjada pelo violonista Gian Correa.
Hábil no toque das sete cordas do violão, Gian Correa – que divide com Henrique Araújo os arranjos do disco – também orquestra o jongo Urucungo com ênfase no toque do berimbau. Urucungo é termo que, no dialeto quimbundo, significa berimbau, instrumento de origem africana associado ao toque dos temas de capoeira.
No disco, Fabiana Cozza alia essa carga ancestral da obra do compositor ao romantismo. Enfatizando a recorrência do amor como tema do repertório do álbum Urucungo, o samba Alquimias – parceria de Nei com Everson Soares – se impõe como um dos títulos mais belos do disco em gravação dividida por Fabiana Cozza com a cantora Ilessi. A letra versa sobre a magia do amor.
Jurutaí também impressiona no conjunto da obra pela precisão com que os versos de Nei Lopes se embrenham no universo poético de Guinga, autor da melodia, do arranjo e do violão, único instrumento da faixa interpretada pela cantora com o próprio Guinga. Destoante na seleção de Urucungo, Jurutaí é canção que poderia figurar sem estranhamento em qualquer disco de Guinga.
Primeiro parceiro de Nei Lopes, compositor revelado por Alcione em single de 1972, Reginaldo Bessa reaparece no álbum Urucungo como coautor de Samba de longe. Já Tela de bamba é samba de Nei com Dauro do Salgueiro que pinta quadro poético para saudar a Portela, uma das escolas de samba mais antigas e tradicionais do Carnaval do Rio de Janeiro.
Na letra de Tela de bamba, Nei referencia Passado de glória (Monarco, 1970). Já Fabiana Cozza, mesmo reverenciando o passado dos bambas do samba, olha para frente ao optar por apresentar somente músicas inéditas de Nei Lopes no álbum Urucungo, valorizando e expandindo a arte negra desse compositor, gigante do samba e do pensamento sobre a cultura afro-brasileira.
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