A Invisibilidade dos Autistas no SUS
Os irmãos Enzo Gabriel, de 6 anos, e Carlos Henrique, de 20, enfrentaram uma longa jornada até receberem o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA) no Sistema Único de Saúde (SUS). Durante uma internação por pneumonia no Hospital do Paranoá, localizado no Distrito Federal, em setembro de 2021, o comportamento agitado de Enzo destacou-se e chamou a atenção dos médicos, revelando estereotipias e a ausência de interação social. A mãe, Roseli Viccielli, já suspeitava desde a infância sobre o quadro do filho.
O diagnóstico de Enzo foi confirmado aos 2 anos e 5 meses no Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib), na Asa Sul. “Desde então, enfrentei uma luta diária para conseguir os atendimentos necessários para ele. Bati em várias portas e só ouvia ‘não’”, desabafou Roseli, que percorreu diversos hospitais no DF e até recorreu à Justiça. Sem vagas disponíveis, seu filho acabou aguardando em listas de espera. “Em todas as tentativas, as respostas eram apenas negativas”, lamentou.
Enquanto Enzo tinha seu diagnóstico confirmado, Carlos só recebeu a notícia de que tinha autismo aos 18 anos, após alta do Hospital da Criança de Brasília José Alencar (HCB). Esse atraso, segundo especialistas, é cada vez mais comum, uma vez que há maior conscientização sobre o TEA e busca por avaliações com profissionais da saúde.
“Quando começou a estudar, os professores notaram suas dificuldades, como a falta de compreensão de informações básicas, como dias da semana ou datas”, contou Roseli.
Falta de Dados Compromete Ações Governamentais
Apesar dos diagnósticos, Enzo e Carlos não estão inclusos nas estatísticas do governo. O Ministério da Saúde confirmou à coluna que não sabe quantas pessoas com autismo são atendidas ou diagnosticadas no SUS. Questões como a quantidade de mulheres, negros ou indígenas afetados, a idade dos pacientes ou mesmo a localização geográfica permanecem sem resposta.
Em nota, a pasta revelou que, em 2024, foram realizados 18 milhões de procedimentos ambulatoriais para pessoas autistas, mas não forneceu mais informações. Especialistas alertam que a falta de dados impede a formulação de políticas públicas adequadas. Sem números, é impossível mensurar a fila de pacientes esperando por atendimento no SUS ou decidir onde concentrar os investimentos em saúde.
“A incapacidade do Ministério da Saúde de identificar quantas pessoas com TEA são atendidas gera um impacto direto nas políticas públicas. A ausência de dados consolidados dificulta a estimativa da real demanda por serviços de saúde e o planejamento de recursos humanos e terapêuticos necessários”, analisou o psiquiatra Vinícius Barbosa, coordenador do Subnúcleo de autismo do Hospital Sírio-Libanês e diretor da associação Autistas Brasil.
Desafios na Notificação de Diagnósticos
Viviani Guimarães, vice-presidente do Movimento Orgulho Autista Brasil (Moab), destacou que a falta de registo dos diagnósticos de autismo por parte dos médicos reflete uma lacuna do governo em relação aos programas voltados ao neurodesenvolvimento. “Como não existe uma obrigação formal para notificar o SUS, muitos pacientes acabam invisíveis nos sistemas de saúde”, comentou.
Questionada sobre os dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI), a equipe do Ministério respondeu que as informações individuais dos pacientes são protegidas por lei. Contudo, números gerais de diagnósticos e atendimentos não são considerados dados sensíveis. Países como a Inglaterra demonstram que a ausência de dados pode ser evitada.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) finalmente incluiu autistas em seu Censo Demográfico de 2022, revelando que existem cerca de 2,4 milhões de pessoas com TEA no Brasil, ou 1,2% da população. A maioria dos diagnosticados são homens, totalizando aproximadamente 1,4 milhão, enquanto as mulheres somam cerca de 1 milhão.
A Luta pela Conscientização e Atendimento
A historia de Jorge Amado, de 7 anos, ilustra as dificuldades enfrentadas. Katharine Vieira, sua mãe, procurou ajuda após sugestões de que o menino poderia ser autista. O encaminhamento para consultas levou um ano, mas o diagnóstico foi claro. “Foi um choque, pois as terapias gratuitas são escassas e a luta é constante”, revelou Katharine.
As estatísticas do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos destacam que 1 em cada 31 crianças de 8 anos é diagnosticada com TEA, um aumento significativo em relação a 2000. Para o professor de Medicina da UnB, Raphael Boechat, isso demonstra uma maior conscientização e acesso ao diagnóstico, não necessariamente um aumento na prevalência do transtorno.
A escassez de informações oficiais pelo Ministério da Saúde compromete o cuidado adequado de autistas no Brasil. “Sem dados, não há planejamento. Apenas se corre atrás do prejuízo”, finalizou Viviani, enfatizando a necessidade urgente de uma mudança nesse cenário.
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Sobre o autismo
O TEA não é considerado uma doença, mas um transtorno do neurodesenvolvimento com origens ainda em investigação. A condição pode ter uma base genética, influenciada por diversos fatores. É comum encontrar múltiplos autistas em uma mesma família.
Os principais sinais do TEA incluem dificuldades na interação social, barreiras na comunicação, comportamentos repetitivos e seletividade alimentar. O tratamento é multidisciplinar, envolvendo suporte essencial para promover o desenvolvimento das habilidades sociais e comunicativas.
A Lei 13.146/2015 define a pessoa com deficiência (PcD) como aquela com impedimentos de longo prazo que podem obstruir sua participação efetiva na sociedade. Isso inclui os autistas.
O Ministério da Saúde afirmou que, em 2024, foram 18 milhões de procedimentos realizados para pessoas com TEA, destacando o investimento de R$ 421 milhões na construção de novos serviços na Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência.
