A Celebração que Evoca Tradições e um Passado Polêmico

Homens com chapéus texanos e mulheres vestidas com longos vestidos de renda dançam em harmonia ao som de músicas country. As mesas, adornadas com bandeiras vermelhas e estrelas brancas sobre um fundo azul, evocam a imagem de um faroeste americano. Porém, essa não é a Geórgia ou o Alabama, mas sim a Festa dos Americanos, também conhecida como Festa Confederada, realizada em Santa Bárbara d’Oeste, no interior de São Paulo, em uma tarde de abril. Antes da pandemia de Covid-19, o evento era uma tradição anual, realizada no cemitério do campo, organizada pela Fraternidade Descendência Americana (FDA) e celebrada por descendentes de imigrantes do sul dos Estados Unidos que, após a Guerra Civil Americana (1861–1865), reconstruíram suas vidas no Brasil.

A imigração americana nesse período trouxe cerca de 2 mil norte-americanos a Santa Bárbara, impulsionados por incentivos do Império brasileiro, que buscava aumentar a produção de algodão, uma atividade então dominada por esses imigrantes. Eles desfrutaram de facilidades como transporte gratuito do Rio de Janeiro, isenção do serviço militar e liberdade para praticar suas religiões, além de adquirir terras a preços muito acessíveis. Entretanto, essa história de prosperidade é sombreada por um passado de exploração: mais de 200 pessoas escravizadas viveram nessa nova colônia, sustentando uma economia que se baseava em práticas escravocratas.

A Proibição de Símbolos Racistas e a Negações do Passado

Desde 2022, Santa Bárbara proibiu o uso de símbolos racistas, como a bandeira confederada, associada a grupos como a Ku Klux Klan, em eventos públicos. Contudo, há uma resistência em aceitar a narrativa sobre as pessoas escravizadas que foram parte dessa história. A cidade, localizada a aproximadamente 130 quilômetros da capital paulista, apresenta um centro urbano marcado por ruas nomeadas com sobrenomes como Pyles, Crisp, MacKnight e Jones, um legado dos imigrantes que colonizaram a área. Essa herança é analisada pela pesquisadora Leticia Aguiar, em sua dissertação de mestrado, que documentou a compra de terras e escravizados pelos imigrantes americanos.

Segundo registros históricos, a população de Santa Bárbara em 1872 era composta por 2.589 almas, das quais 213 eram escravizadas. A pesquisa revela que os imigrantes adquiriram não apenas terras, mas também pessoas escravizadas, que eram utilizadas nas plantações de algodão, cana-de-açúcar e café. Exemplos como a compra de escravizados por Robert Meriwether, um dos primeiros imigrantes a adquirir terras na região, demonstram como essas práticas estavam integradas ao cotidiano da colonização.

Memória e Negação: A Herança Escravocrata

Contudo, a memória do passado escravocrata é minimizada, como aponta Silvia Motta, uma negra e ativista cultural da região. “Tudo o que é da população negra é apagado”, afirma, destacando que a narrativa frequentemente celebra os imigrantes enquanto ignora as violações enfrentadas pelos escravizados. Mesmo no Museu da Imigração, as referências à escravidão são limitadas, ressaltando uma visão “americanizada” da história. Esse apagamento se estende a figuras como Rogério Seawright, presidente da FDA, que minimiza a herança escravocrata, insistindo que a contribuição dos imigrantes se limita a aspectos positivos.

A Festa Confederada, uma vez celebrada com grande pompa, hoje enfrenta desafios. O fascínio por essa herança cultural é evidente, com descendentes como Marina Lee Colbachini lembrando da alegria das celebrações. No entanto, Colbachini também reconhece a complexidade do uso da bandeira confederada, um símbolo que representa um legado de supremacia branca.

O Conflito de Memórias e Identidades

A questão da bandeira se tornou central em debates públicos, especialmente após eventos de violência ligados ao simbolismo racista nos EUA. O debate em Santa Bárbara ganhou novo impulso após a proibição de símbolos racistas em eventos públicos, uma conquista fruto de anos de luta do movimento negro. Silvia Motta enfatiza a importância do resgate da memória negra, destacando figuras históricas como Dionysio de Campos, um homem escravizado que não teve seu legado reconhecido.

Enquanto isso, a Câmara Municipal de Santa Bárbara, dominada por uma bancada majoritariamente conservadora, enfrenta resistência à mudança. Projetos de lei que visam proibir símbolos racistas nos eventos da cidade têm encontrado barreiras, mas a mobilização da comunidade continua a crescer. O movimento busca não apenas a remoção de símbolos, mas também a valorização da cultura afro-brasileira e o reconhecimento do papel histórico das pessoas negras na formação da cidade.

Um Futuro de Reconhecimento e Respeito

O caminho para a verdade e a reconciliação em Santa Bárbara d’Oeste é longo, mas iniciativas estão em andamento. A implementação da Lei Federal 10.639, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas, é um passo positivo. Contudo, Silvia Motta e outros ativistas enfatizam a necessidade de um diálogo contínuo e da valorização da cultura negra, que vai além de meras políticas públicas. “Precisamos dar voz aos que foram silenciados”, conclui Motta.

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