Na década de 1980, tive o privilégio de coordenar a seção de infecções pós-transplante de órgãos no Instituto do Coração (Incor), vinculado ao Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, em são paulo. Durante esse período, vivi experiências impactantes, observando a jornada de pacientes que aguardavam ansiosamente a chance de receber um novo coração. Esses indivíduos estavam não apenas enfrentando a incerteza da vida, mas também dependiam da generosidade de famílias que, em meio à dor da perda de um ente querido, optaram por autorizar a doação dos órgãos. Essa decisão, muitas vezes tomada em circunstâncias inimagináveis, representava uma luz de esperança em meio ao sofrimento.
Anos mais tarde, meu trabalho no complexo do HC me levou a acompanhar de forma próxima aqueles que esperavam pela tão desejada transfusão de fígado. O processo de doação e transplante de órgãos é angustiante e repleto de expectativas, mas também é um testemunho de solidariedade humana. Muitas vezes, a morte súbita de uma pessoa próxima transforma-se em uma oportunidade de vida para alguém desconhecido. Esse fenômeno é verdadeiramente admirável e ilustra o melhor do ser humano em momentos de adversidade.
No brasil, a ligação entre doadores e receptores é estabelecida pelas equipes especializadas em transplantes e aquelas responsáveis pela captação de órgãos e tecidos. Essa dinâmica é uma característica essencial do sistema de transplantes no país, garantindo a transparência e a legalidade do processo. Um aspecto fundamental é que a equipe envolvida na captação de doadores não interage diretamente com os profissionais que realizam os transplantes. Além disso, não há comunicação entre a família do doador e o receptador, sendo essa intermediação realizada pelo sistema único de saúde (SUS).
O Sistema Nacional de Transplantes, pertencente ao ministério da saúde, juntamente com as 27 Centrais de Transplantes das secretarias estaduais, forma a base que possibilita a realização de transplantes de diversos órgãos, como coração, pulmões, pâncreas, rins e fígados, além de córneas e tecidos. Para que um coração, por exemplo, chegue ao paciente que aguarda por esse procedimento, uma Organização de Procura de Órgãos (OPO) deve contatar a instância reguladora do SUS. Essa entidade, então, aloca o órgão para a equipe médica responsável, seguindo critérios rigorosos sob a supervisão constante de órgãos de controle, incluindo o Ministério Público.
A estrutura do sistema de doação e transplante de órgãos e tecidos no brasil é robusta e é reconhecida mundialmente como o maior sistema público de transplantes. A criação do sistema nacional em 1997 trouxe transparência e justiça na distribuição de órgãos, estabelecendo critérios claros de espera, compatibilidade e gravidade dos pacientes nas listas.
A captação de doadores é um processo sensível e delicado, exigindo uma abordagem cuidadosa com os familiares de pessoas que faleceram de maneira repentina, muitas vezes devido a Acidente Vascular Cerebral (AVC) ou traumatismos cranianos. A explicação sobre o estado de morte encefálica, em que há pulso cardíaco, mas ausência de atividade cerebral, é um desafio, especialmente quando se considera o estresse emocional presente em momentos tão críticos. A urgência para viabilizar o transplante começa nesse instante, atravessando várias etapas essenciais, como a remoção e o transporte do órgão até o centro cirúrgico, respeitando prazos extremamente rigorosos e realizando exames sorológicos obrigatórios.
No período em que fui secretário de Saúde do Estado de são paulo, entre 2013 e 2018, dediquei esforços significativos para humanizar e aprimorar o trabalho de captação de órgãos. Com isso, conseguimos uma redução considerável na taxa de recusa familiar para a doação. Implantamos iniciativas como a contratação de frotas privadas, incluindo carros e helicópteros, para a busca de órgãos, além de parcerias com instituições para acelerar a realização de exames que confirmassem a morte encefálica de potenciais doadores. Campanhas de conscientização foram promovidas, e as equipes e hospitais que se destacaram no processo de captação, notificação e realização de transplantes foram premiados.
É crucial que todos os brasileiros se informem sobre a importância da doação de órgãos através de fontes confiáveis e da mídia. Comunicar o desejo de ser um doador aos familiares pode fazer uma significativa diferença na vida de milhares de pacientes que esperam por um transplante. A solidariedade é uma das formas mais poderosas de transformar dor em esperança, e a doação de órgãos pode, de fato, salvar vidas.