O Início de uma Nova Era Religiosa
Há mais de dois séculos, na cidade francesa de Lyon, nascia Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido por seu nome adotivo, Allan Kardec. Embora seja amplamente reconhecido como o fundador do espiritismo, Kardec provavelmente não poderia prever que essa doutrina religiosa se estabeleceria com tanta força em solo brasileiro, muito mais do que no seu país natal.
O palestrante e escritor espírita Ricardo Ribeiro Alves, em uma entrevista para a BBC News Brasil, enfatiza que, apesar de a França ser o berço do espiritismo, o francês comum muitas vezes não tem conhecimento sobre essa religião. Estima-se que o Brasil se tornou o país onde o espiritismo realmente floresceu, de acordo com especialistas que se deparam com dificuldades em quantificar o número de adeptos ao redor do mundo.
Dados e Censos Reveladores
O filósofo e antropólogo Bernardo Lewgoy, professor na UFRGS, comenta que o Conselho Espírita Internacional, ao reunir estatísticas de diferentes países, aponta que há aproximadamente 13 milhões de espíritas no mundo. No Brasil, desde 1940, o IBGE acompanha a quantidade de pessoas que se identificam como espíritas. Os dados mais recentes, obtidos no Censo de 2022, revelaram que 3,18 milhões de brasileiros se identificam com a doutrina, representando 1,8% da população, uma diminuição em relação aos 3,56 milhões ou 2,2% registrados em 2010.
Embora o número de espíritas tenha caído, a Federação Espírita Brasileira aponta que cerca de 30 milhões de brasileiros simpatizam com a doutrina, apesar de se declararem seguidores de outras religiões. Assim, surge a pergunta: o que levou o espiritismo a prosperar no Brasil enquanto teve dificuldades em se estabelecer em outros lugares, como na França? E o que explica a queda no número de praticantes na última década?
Da Hostilidade à Aceitação no Brasil
No início, Kardec mostrou-se cético em relação às sessões mediúnicas populares na França, mas a curiosidade o levou a participar delas, eventualmente convencendo-se da comunicação com espíritos. O lançamento de ‘O Livro dos Espíritos’ em 1857 estabeleceu as bases da doutrina, que Kardec via mais como uma codificação do que como a criação de uma nova religião.
No Brasil, o espiritismo chegou em 17 de setembro de 1865, em Salvador. Lewgoy destaca que o movimento inicialmente atraiu a elite educada, especialmente católicos não dogmáticos. Naquela época, a Igreja Católica via o espiritismo mais como uma filosofia que desafiava seus dogmas do que como uma concorrência direta.
No entanto, a aceitação do espiritismo no Brasil foi facilitada por sua suposta base científica e um perfil social elevado entre seus primeiros seguidores. Ao longo das décadas seguintes, a religião expandiu suas raízes, promovendo assistência social e a publicação de obras literárias que atraíram um público mais amplo.
Crescimento e Popularização do Espiritismo
Entre 1970 e 2010, o espiritismo no Brasil experimentou um crescimento exponencial. A amostragem inicial do Censo, em 1940, registrou apenas 460 mil adeptos, um número que saltou para 3,8 milhões em 2010, um aumento de mais de 720%. Esse crescimento esteve ligado à urbanização e ao interesse das classes médias urbanas, que encontraram no espiritismo uma religiosidade respeitável e moderna, em contraste com o catolicismo tradicional.
O sincretismo também desempenhou um papel fundamental na aceitação do espiritismo no Brasil, permitindo que elementos de religiões afro-brasileiras se entrelaçassem com a doutrina espírita, criando uma versão mais nacionalizada do espiritismo. Personalidades como Chico Xavier e Divaldo Franco ajudaram a popularizar a religião, tornando-a mais acessível ao público.
Desafios e Oportunidades no Cenário Atual
Entretanto, a partir de 2010, observou-se uma diminuição no número de espíritas no Brasil, com a participação caindo 0,4 pontos percentuais, o que representa aproximadamente 400 mil praticantes a menos. Lewgoy atribui essa queda a uma concorrência crescente com igrejas evangélicas, o reconhecimento das religiões afro-brasileiras e a secularização, onde a religiosidade tem perdido espaço na vida cotidiana.
A historiadora Célia Arribas também destaca a crescente identificação de adeptos de religiões afro-brasileiras, que se afastam do espiritismo, preferindo se declarar umbandistas ou candomblecistas. A falta de novas lideranças carismáticas no movimento espírita e a diminuição da presença do espiritismo na cultura popular, como em filmes e novelas, refletem esse cenário de mudança. Além disso, a polarização política recente no Brasil também influenciou a percepção pública do espiritismo, afastando alguns adeptos insatisfeitos com certas posturas conservadoras.
Uma Nova Era para o Espiritismo
De acordo com Lewgoy, o espiritismo brasileiro está passando por uma transformação, afastando-se de suas raízes populares e se restringindo novamente às elites intelectuais e profissionais. Com uma maior taxa de ensino superior e acesso à internet entre seus adeptos, a religião continua a influenciar a cultura brasileira, tornando-se um importante pilar de valores e práticas na sociedade contemporânea.
Embora o espiritismo enfrente desafios significativos, sua capacidade de se adaptar pode indicar um futuro em que, mesmo sem perder completamente sua essência, possa dialogar com novas realidades sociais e espirituais. O Censo de 2022 evidencia que o espiritismo não está apenas em crise, mas passando por uma metamorfose civilizacional.