O recente resultado das eleições nos Estados Unidos gerou uma onda de debatidos sobre as “causas” da surpreendente derrota de Kamala Harris, que poderia ter feito história como a primeira mulher e pessoa não branca a ocupar a presidência do país. As discussões se intensificaram em diferentes esferas da sociedade, com análises que variaram desde a crítica ao machismo enraizado até a percepção de que o curto período de campanha e as dificuldades de um governo em permanecer no poder desempenharam papéis cruciais nessa derrota.
Durante os debates acompanhados, ficou claro que uma combinação de fatores contribuiu significativamente para o revés eleitoral. Um dos principais desafios enfrentados pela candidata foi a dificuldade em apresentar uma mensagem coesa, que conseguisse ressoar com os diversos segmentos de uma sociedade notoriamente dividida. A divisão vai além das tradicionais linhas entre progressistas e conservadores; ela se estende ao abismo econômico que separa os ricos dos pobres, as interações raciais entre brancos e negros, e até mesmo a distância entre acadêmicos bem informados e aqueles que vivem em situações de extrema vulnerabilidade e descaso social.
Uma das principais lições que emergiram desse processo eleitoral é a noção de que, apesar de todo o poder financeiro de uma campanha, existem barreiras que o dinheiro não pode transpor. Quando uma parcela significativa da sociedade se encontra marginalizada, tanto econômica quanto educacionalmente, isso se torna um obstáculo quase intransponível, independentemente da cor da pele ou do histórico de cada grupo.
Kamala Harris levantou uma das campanhas mais robustas em termos de financiamento na história política norte-americana. Desde o anúncio de sua candidatura, ela arrecadou impressionantes 1,5 milhão de dólares em menos de uma hora em uma plataforma voltada para mulheres negras, o grupo With Black Women. Além disso, conseguiu prolongar essa arrecadação através do apoio de homens e mulheres de diversas origens e etnias que temiam o retorno de donald trump e as implicações que isso poderia ter para a democracia americana.
Entretanto, a pergunta que se impõe é: quem realmente teme um regime autoritário, quando fronteiras mais profundas como a exclusão e a desigualdade se mostram tão presentes? Em uma nação que se diz a mais próspera do mundo, a realidade de muitos cidadãos é marcada pela falta de moradia, mesmo em um contexto de inflação controlada e custo de vida elevado. Se por um lado donald trump não venceu diretamente a eleição, por outro, o “sonho” que ele representa — uma visão nostálgica da América — prevaleceu, uma concepção de um passado onde a falta de abrigo não era um destino comum.
Os valores essenciais que se tornaram tema central nesta eleição refletem preocupações e costumes arraigados entre uma porção significativa da população. Infelizmente, a linguagem, muitas vezes acadêmica e elitista, adotada por Kamala não atingiu os setores mais vulneráveis, aqueles que se sentem ameaçados não só pela chegada de novos imigrantes, mas também por aqueles que, de alguma forma, já conquistaram sua prosperidade. Não podemos esquecer que tanto Obama quanto Kamala são herdeiros da experiência imigrante.
Embora Kamala Harris tenha atraído o apoio de empresários e figuras icônicas do mundo negro, seu discurso não conseguiu alcançar os pequenos empreendedores e as comunidades afro-americanas menos favorecidas. Seu posicionamento sobre questões como o aborto pode ter ressoado entre as mulheres esclarecidas, mas falhou em dialogar com aquelas que ainda nem conseguiram completar o ensino médio. Ao contrário, seu adversário conseguiu se comunicar de maneira mais eficaz com essas diversas camadas sociais, aproveitando-se do eco da frase popular “Deus Salve a América”, reforçando a ideia de que ele poderia ser o salvador.
Os Estados Unidos atualmente estão passando por um fenômeno que, de forma semelhante, se observa em várias partes da América Latina em diferentes períodos: a busca por “salvadores da pátria”. Com o tempo, a população perceberá que esses heróis, frequentemente idolatrados, são criaturas da ficção, relegadas às páginas de histórias em quadrinhos, e não a soluções concretas e duradouras para os problemas sociais contemporâneos. Portanto, que Deus proteja todas as Américas e o mundo, pois os desafios são muitos e a busca por verdadeiros líderes é urgente.