O Impacto da literatura de Clarice Lispector

É curioso pensar que, até agora, eu nunca havia lido um romance completo de Clarice Lispector. Se por acaso o fiz, minha experiência foi em um estado quase catatônico. Contudo, pude mergulhar em suas crônicas sobre Brasília, que, para mim, são as mais profundas e reveladoras sobre a essência da cidade. Mesmo tendo explorado inúmeros contos e ensaios, os romances me provocam tal confusão que acabo deixando-os de lado nas primeiras páginas.

Diante de Clarice, a sensação de perda é quase palpável. Apesar de ter tentado diversas vezes me conectar com sua escrita desconcertante e profunda, isso ainda não foi suficiente. A biografia de Benjamim Moser, que li na esperança de entender melhor a autora, não conseguiu mudar essa realidade, ao menos até agora.

Recentemente, decidi ler um dos ensaios de Benedito Nunes, um filósofo e crítico literário paraense, sobre a obra de Lispector. O livro, publicado em 1973 pela Edições Quíron, é um pequeno tesouro: quadrado, de capa verde e com uma fotografia impactante da autora. Nela, Clarice apresenta-se para a câmera com uma expressão que mistura majestade, sensualidade e indiferença.

A Descoberta Através de Benedito Nunes

Essa leitura me fez finalmente sentir uma conexão com Clarice, e tudo graças a meu ex-padrinho de batismo, Benedito Nunes. Cresci em Belém do Pará e, desde pequena, sabia que tinha um padrinho notável, como minha mãe costumava contar. Após a perda do meu pai, essa ideia de um padrinho importante ficou armazenada nas memórias do passado. Ao me tornar jornalista, comecei a notar referências a Benedito Nunes nos cadernos culturais dos jornais, um brilho do passado que reacendeu a crença de que ele era o meu padrinho.

Nunca procurei Benedito para pedir sua bênção, e talvez tenha sido melhor assim. Um tempo depois, ao conversar com um grande amigo dele, mencionei o fato de ser afilhada de batismo do renomado filósofo. O olhar cético e questionador do meu interlocutor me fez perceber que talvez eu houvesse criado essa história. Após investigar, descubro que havia confundido com outro Benedito. Essa associação inventiva me levou a questionar a realidade do meu “padrinho”.

Agora, sob a perspectiva de uma ex-afilhada, li o ensaio de Nunes sobre Clarice e, de certa forma, ainda me senti conectada ao grandioso crítico literário. Benedito, que se apresentou como um erudito desprovido de pedantismo, faz uma análise da obra de Clarice de maneira profunda e sensível. Em suas palavras, a autora diz que: ‘Fiquei muito surpreendida quando ele me disse que sofreu muito ao escrever sobre mim. Minha opinião é que ele sofreu porque é mais artista do que crítico: ele me viveu e se viveu nesse livro. O livro não me elogia, só interpreta profundamente’.

A Complexidade da Obra de Clarice Lispector

Na conclusão de seu ensaio, Benedito Nunes descreve Clarice Lispector como alguém que busca incessantemente: ‘Narrar é narrar-se: tentativa apaixonada de chegar ao esvaziamento, ao Eu sem máscara, tendo como horizonte – existencial e místico, não mítico – a identificação entre o ser e o dizer, entre o signo escrito e a vivência da coisa, indizível e silenciosa’.

A obra de Clarice é uma busca desesperada de se aproximar da essência do que não conseguimos nomear, mas que é inegavelmente presente. Ela vai fundo, na tentativa de alcançar aquilo que escapa ao entendimento. Essa coragem de explorar o desconhecido é exatamente o que torna sua literatura tão cativante. E quem sabe, com essa nova perspectiva trazida por meu ex-padrinho, eu finalmente consiga ler um romance completo da autora, sem medo do precipício, ou, ao menos, sabendo que posso retornar, munida da sabedoria de Benedito.

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