Aumento do Número de Médicos e Desafios na Cobertura de Saúde

Nos últimos dez anos, a quantidade de médicos na região Norte do Brasil praticamente dobrou, mas a cobertura ainda é a mais baixa em todo o país. Para melhorar essa realidade, a abertura de novos cursos de medicina surge como uma das principais apostas. Um exemplo é Marcos*, que aos 13 anos descobriu que seu ouvido direito não captava os sons ao seu redor. O diagnóstico foi feito durante uma ação de saúde no Quilombo Piratuba, localizado em Abaetetuba, Pará. Os pais de Marcos já suspeitavam de sua condição, mas a confirmação veio de forma inesperada, graças a uma consulta gratuita realizada por voluntários do projeto Rios da Saúde, da Afya Faculdade de Ciências Médicas de Abaetetuba, que também oferece a estudantes a oportunidade de vivenciar a prática médica na Amazônia.

A região Norte, conhecida por apresentar a menor cobertura médica do Brasil, beneficiou-se de uma triagem simples, que revelou que nenhum médico havia examinado o ouvido de Marcos anteriormente. “Não foi visualizada a membrana timpânica, por provável anomalia congênita”, explica Cássia de Barros Lopes, nefropediatra no Sistema Único de Saúde (SUS) e coordenadora do curso na faculdade. Com o diagnóstico em mãos, a família de Marcos agora tem um roteiro a seguir em busca de um especialista, sendo o primeiro passo um contato com a agente comunitária de saúde local.

Edinelma Sousa da Costa, que trabalha há 19 anos como agente comunitária de saúde, tem um papel crucial nesse processo. Ela conhece todos os 1,3 mil moradores do quilombo e, mesmo sem uma Unidade Básica de Saúde na localidade, oferece orientação e acompanhamento dos casos durante suas visitas. “Apesar de termos acesso ao SUS, a espera por algumas especialidades pode ser longa. Portanto, iniciativas como a dos médicos voluntários são essenciais para a detecção de doenças”, ressalta Edinelma, conhecida como Nelma, enquanto explicava o laudo médico para os pais de Marcos no quintal de sua casa, próximo a um igarapé.

Melhorias Gradativas na Distribuição de Médicos

O impacto dos dois dias de atendimentos gratuitos na escola transformada em clínica foi significativo. Para muitos moradores, essa foi a primeira vez que tiveram acesso a especialistas como pediatras, cardiologistas e infectologistas. O Pará, no entanto, ainda ocupa o segundo lugar no ranking de pior distribuição de médicos do Brasil, com uma taxa de apenas 1,38 médico para cada mil habitantes, perdendo apenas para o Maranhão, que possui 1,36. Em contrapartida, estados como o Distrito Federal e o Rio de Janeiro apresentam taxas bem superiores, com 6,3 e 4,3 médicos por mil habitantes, respectivamente.

Felipe Proenço, secretário de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde, reconhece o desafio, mas destaca que políticas públicas têm sido implementadas para melhorar a distribuição de médicos e corrigir desigualdades. “Embora a região ainda tenha a menor média de médicos por habitante, temos observado avanços. Antes de 2013, a taxa era de apenas 0,8 médicos para mil habitantes”, explica Proenço. O programa Mais Médicos, que começou a ser implementado em 2013, teve um grande impacto, pois o número de médicos na região aumentou de 15.624 em 2011 para 30.549 em 2024.

Novas Iniciativas e Formação de Profissionais

A abertura de novas faculdades de medicina também se mostra promissora. Desde 2023, o programa Mais Médicos atua em várias frentes, incluindo a contratação emergencial de médicos, a melhoria da infraestrutura das unidades de saúde e o aumento de vagas para graduação e residência médica. O número de vagas em cursos de medicina na região Norte saltou de 8 para 23 para cada 100 mil habitantes, com editais de novos cursos priorizando municípios que ainda carecem de cobertura médica. Segundo Proenço, parte das novas vagas são oferecidas com bolsa integral, incentivando estudantes locais a permanecerem na região.

Um exemplo é a graduação inaugurada em 2022 em Abaetetuba, que, apesar de ainda não ter formado sua primeira turma, já engaja alunos em atividades práticas no projeto de atendimento comunitário. Gabriel Pinheiro, 23 anos, é um dos alunos bolsistas que atuaram nesse projeto. “É uma experiência única, aqui o atendimento é mais humanizado e conseguimos entender melhor a realidade da população”, afirma Pinheiro, enquanto faz triagem nos moradores do quilombo.

Entre 2013 e 2022, o Brasil registrou a maior expansão do ensino médico de sua história, com 23 mil novas vagas surgindo após 2014, a maioria em instituições privadas. Contudo, a Associação Médica Brasileira expressa preocupações em relação à falta de investimento em residência médica, alertando sobre a possibilidade de surgirem propostas inadequadas que comprometam a formação de especialistas. César Eduardo Fernandes, presidente da associação, destaca que a prioridade deve ser a formação qualificada dos profissionais.

A Permanência dos Médicos na Região

Trabalhar em comunidades remotas traz desafios únicos e requer um entendimento da cultura local e do idioma, especialmente no caso de populações indígenas. Fagner Carvalho, um médico ribeirinho e professor local, decidiu permanecer em sua cidade natal para ajudar a sua comunidade. “Atender aqui é muito gratificante, pois conheço a realidade das pessoas e consigo oferecer um atendimento mais próximo e adequado às suas necessidades”, conta Carvalho, que coordena o Serviço Especializado em Doenças de Chagas em Abaetetuba.

A realidade na Amazônia demanda que os profissionais estejam preparados para lidar com condições sociais que afetam a saúde da população. Carvalho observa a importância do apoio psicológico e de um vínculo empregatício mais sólido, como concursos públicos, que poderiam facilitar a fixação de médicos em áreas remotas. O médico conclui: “Atender pessoas conhecidas traz um sentimento de dever cumprido. É um privilégio fazer a diferença na vida da minha comunidade”.

*Nome alterado pela reportagem.

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